quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Meu amigo John


Conheci Johnny quando éramos dois adolescentes. Me lembro bem demais daquele pub cheio de gente e fumaça de cigarro e os gritos de todos quando ele, ao lado de seus amigos, subiu naquele palco. Johnny usava uma jaqueta de couro gasta, camiseta branca, jeans justos e um par de botina nos pés. Os cabelos no estilo teddy boy que todos os caras usavam na época. Se aproximando do microfone, o rapaz tragou o cigarro que pendia de seus lábios finos pela última vez antes de taca-lo no chão. “Olha, olha, olha que coisa. Nem consigo enxergar o fim desse lugar hoje. Você consegue Paulie?” Dizia aos colegas de banda apagando a bituca ainda acessa com a sola do sapato, enquanto forçava a visão tentando enxergar o rosto de cada um naquele lugar. Acenei. Ele sorriu. Acenou de volta.
Horas depois estávamos todos sentados em frente ao pub em que a banda tocara antes. O ar frio da madrugada, o céu acordando aos pouquinhos, cada um com um enorme copo de cerveja nas mãos. John se sentava novamente ao meu lado na calçada, me pedindo que segurasse sua bebida para que a sua leve embriagues não o deixasse desperdiçar boa cerveja, como ele mesmo me disse com sua voz rouca. Eu não estava sentada de fato diretamente na calçada. Johnny pegou o  jornal do dia que se encontrava à porta de uma das casas da vizinhança e distribuiu entre as garotas do grupo para que pudessem se sentar sem medo de sujar suas saias. “As mães de vocês não ficariam muito feliz de saber que vocês passaram a noite sentadas na calçada com um bando de rebeldes do rock, certo?” E de fato não seria muito simples explicar, até porque meus pais achavam que eu estava dormindo na casa de uma amiga naquela noite.
Nada ilustra mais a pessoa que ele era do que esse ato. Roubando jornal da casa de uns pra garantir o conforto de outros. Com o passar do tempo comecei a conhecer aquele rapaz de nariz reto, olhos e cabelos castanhos e de alguma forma, a cada segundo que eu passava em sua presença o meu carinho e admiração por ele cresciam exponencialmente.  Ele me contou de sua infância complicada e como vivera com os tios desde muito novo. Sabia que o pai estava na Nova Zelândia. Ou ao menos estava lá na última vez que teve notícias dele. “Não que eu me importe com aquele porco.” Me disse uma vez enquanto andávamos até minha casa depois de mais um show. Mas ele se importava sim, eu conseguia sentir só pelo jeito que olhava para os próprios pés enquanto dizia isso. Porém ele era assim. Aparentemente aprendera a guardar as próprias emoções dentro de si, por isso eu entendia o laço que tínhamos para que ele chegasse a me contar essas coisas.
Ele só queria ser um herói da classe operária.  Ele só queria cantar o que amava e levar uma mensagem ao público. Poder para o povo. Dar uma chance para a paz. Mas não se deixe enganar; apesar da imagem que ele fazia, John não gostava de política. Não gostava de confronto de nenhuma natureza apesar de ser um tanto encrenqueiro. Era rotina sua tia receber cartas do diretor do colégio quando ele ainda era menino. Tinha uma língua afiada demais, um humor extremamente sarcástico e um tanto boca suja. E apesar de sua infância difícil, o falecimento da mãe quando finalmente estavam se reaproximando e toda a dor que não deixava mostrar, Johnny tinha um coração enorme. Um romântico escondido atrás de uma máscara de rebelde. Sempre disposto a por um sorriso no rosto de alguém com suas piadas e imitações. Atencioso até seu último dia. E eu sou muito grata pela pessoa que ele foi.
Mesmo depois que ele e os outros rapazes saíram da cidade em busca do sucesso que tanto desejavam, John não deixou seu passado para trás. Falava com sua tia quase que religiosamente e apesar da distância, nós sempre mantemos contato. Ele me mandava cartas e cartões postais das cidades pelas qual passavam, canhotos de ingressos dos shows que faziam e eu lhe enviava as notícias daquela cidade portuária. E eu acompanhei com um sorriso no rosto o crescimento daqueles garotos que antes tocavam em um pub apertado e acabaram lotando estádios e levando milhões de adolescentes à loucura. E ele continuava o mesmo. Apesar da fama, do dinheiro, das drogas e das mulheres que o seguiam por todas as partes, ainda conseguia ver nele aquele garoto encrenqueiro com cabelo teddy boy e jaqueta de couro.
Não me entenda mal, ele não era um santo. Longe disso. Soube por sua esposa na época, e mãe de seu primeiro filho, que John a traía constantemente. As vezes chegava até a agredi-la. E ela aceitava. Simplesmente porque o amava demais. Não concordei com nenhum dos dois para ser honesta, nem com Cynthia por se prestar ao papel, e muito menos com ele por ficar por aí com mulheres que só se importavam com o status dele enquanto tinha esposa e filho esperando que voltasse para casa. E isso se repetiu com sua segunda esposa; mas essa por sua vez decidiu deixa-lo até que John se desse conta de seus erros. E isso funcionou muito bem, de fato. Apesar de tudo isso era visível o amor que ele sentia por ambas.
Sua língua afiada causou problemas a ele mesmo fora do colégio. Quando afirmou que sua banda era mais popular do que Jesus (e ainda hoje eu concordo), o rapaz viu uma quantidade considerável de pessoas lhe virarem as costas no auge do sucesso; gerando queima de discos em praça pública, artigos muito mal educados por parte da mídia e o horror de famílias católicas com filhas enlouquecidas pelo quarteto. “Não que isso não tenha sido um bom marketing. Os adolescentes amam o que é proibido.”, ele me explicou em uma de suas longas cartas.
Ele era um cara comum. Amava seus amigos e sua família apesar de ter errado muito com todos eles. Amava o que fazia. Amava sua cama. Era um péssimo motorista (mesmo). Tinha uma criatividade absurda. Adorava conseguir fazer alguém rir, assim como adorava implicar com seus colegas de banda. Amava passar um tempo com seus filhos e tentava manter um relacionamento bom com sua primeira esposa. Deixou a barba e os cabelos crescerem pela paz. Só desejava que as pessoas pudessem viver em harmonia uma com as outras. Deixou sua carreira profissional de lado para se tornar pai de família; coisa que ele não conseguiu ser para o primeiro filho. Querido com todos os que trabalhavam com ele ou para ele. Atencioso com os fãs até o fim. Literalmente.  Recebi a notícia pelo jornal no dia seguinte e era como se o mundo tivesse parado por alguns segundos. Qual era a motivação para se matar um homem como ele? Na porta de casa? Ainda hoje isso me deixa atordoada.
Ele se foi cedo demais. Ainda tinha muitas batalhas para liderar. Muitos movimentos para abraçar. Os filhos para ver crescer. Uma esposa para amar. Muita música a se fazer. Muitas autoridades pra enfrentar. Muita gente pra fazer feliz. Mas foi assim. Ele teve que ir mas eu sei que deixou para todos o seu espírito; e no coração de todos que acreditam que a paz é sim possível, existe um pouco dele nos impulsionando à luta. Uma luta sem armas, sem mortes, só com o amor.  E todo dia 9 de Outubro eu desejo que ele estivesse aqui para que eu pudesse lhe mandar um cartão de feliz aniversário, ou ligar para ele logo cedo para desejar que tivesse mais um ano cheio de alegria. Ainda assim me lembro daquele último aniversário que passei ao lado do adolescente rebelde. Todos ao redor da mesa da sala de jantar da tia do aniversariante que colocava um grande bolo de chocolate cheio de velas azuis no centro daquela constelação de alegria e sorrisos que éramos nós. E ele sorria. Aquele sorriso que iluminava seu rosto e se refletia no de cada um daquela sala. E ficava sem graça quando começávamos a cantar em coro. É esse o John que eu guardo no meu coração, mesmo que tudo o que eu disse não passe de memórias que eu inventei. A cada dia 9 de Outubro eu sei que, diferente do que ele costumava dizer, o sonho não morreu.
Obrigada por tudo Johnny boy. Feliz aniversário.

Te amo pra sempre.  

Por Mariana J.

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