Eu estava deitada de costas para o chão com meus olhos
vagando o teto branco do quarto abafado na madrugada, sentindo minhas pálpebras
pesarem a cada minuto que se passava. Augusto repousava a cabeça cheia de fios
longos e cortados assimetricamente sobre o osso saltado do meu quadril. Na
posição em que me encontrava conseguia vê-lo soltando uma grande quantidade de
fumaça branca e densa por ente os lábios antes de me entregar o cigarro fino e
já bem reduzido entre o indicador e polegar ossudos de sua mão. Puxei. Segurei.
E fui soltando a fumaça como num suspiro preguiçoso enquanto levava o cigarro
de volta a Augusto que puxou só mais uma vez antes de abandona-lo sobre o chão
frio. Se a vida de alguns é um eterno Carnaval, bem, a minha seria um tango.
Sempre dramática, exagerada, passional, intensa. Antes de conhecer Augusto eu
vinha dançando sozinha a muito tempo, tanto que eu ainda estava tentando
reaprender os passos que antes eu dançava com outros caras. De olhos fechados
deixei que meus dedos se perdessem naquela floresta de fios macios que era seu
cabelo. Aquele momento não poderia ser mais perfeito. Nós dois totalmente
altos, largados no chão de seu quarto. Eu fazendo um cafuné, ele passando a
ponta dos dedos longos por sobre a minha perna direita. Um silêncio confortável
enchia o cômodo e tudo o que eu conseguia ouvir era a sua respiração calma em
descompasso com alguns carros que passavam na rua.
- Eu sempre gostei muito de cemitérios. – Ele soltou
enquanto desenhava espirais no meu joelho.
- O que?
- Eu sempre gostei de cemitérios, sabia? De verdade. Acho
fascinante.
- Disserte. – falei sorrindo. Augusto tem essa mania de
dizer algumas coisas aleatórias, não necessariamente quando está sobre efeito
de drogas.
- Eu sei lá, me sinto confortável, como se eu pudesse ser eu
mesmo. Como quando você sabe que não tem ninguém te observando. Bem, talvez
tenha algum espírito te observando – de olhos fechados eu conseguia notar pela
forma com que sua voz saía que estava com um sorriso largo no rosto e sorri
junto – nunca se sabe.
- Aham.
- Teve uma vez – ele disse enquanto se sentava, o que me fez
abrir os olhos a tempo de observar seus movimentos- em que eu estava em Buenos
Aires, alguns anos atrás. Eu sempre visito o cemitério das cidades em que vou,
e sério, o cemitério de lá é muito bonito. E antigo. Antigo pra caralho. –
Augusto falava tão calmamente que toda vez que ele abria a boca eu
automaticamente queria me aconchegar mais perto só para ouvir sua voz.
- Sendo um cemitério tão antigo – voltou a dizer passando as
mãos no cabelo como se tentasse bagunça-lo ainda mais- da pra imaginar a
quantidade de túmulos que existe lá. Tem uns enormes, com estátuas belíssimas e
dezenas de placas dedicatórias das pessoas que ficaram. Colegas de trabalho.
Família. Amigos. Essas coisas.
Tem outros de famílias grandes que são praticamente
mausoléus. Lembro de um que tinha mais de 10 caixões diferentes em estantes.
Todos enormes, bonitos, bem cuidados, com flores frescas enfeitando. Pela
estética do túmulo você consegue imaginar se a pessoa era querida certo? –
concordei com a cabeça pra mostrar que estava acompanhando.
Então eu estava sentado em um dos banquinhos de madeira que
tinha por lá e fiquei observando os outros turistas que estavam lá e todos –
não uma meia dúzia, a grande maioria- parava pra observar e tirar foto dos
enormes mausoléus. Ninguém nem olhava para aquelas lápides muito antigas, com o
nome e data de falecimento tão desgastados que você mal consegue enxergar. Todo
mundo passava direto. Eu parava em todos e ficava imaginando quem eram. As suas
histórias, seus sonhos, as vidas que viveram. As pessoas que estão enterradas
lá são menos importantes do que aquelas com os túmulos cheios de dedicatórias?
E se as famílias não existem mais? E se elas simplesmente não podiam pagar uma
sepultura mais elegante?
Eu sei que isso soa meio idiota mas as pessoas não deveriam
se preocupar tanto com a estética do maldito tumulo, o morto não vai voltar pra
agradecer. Você precisa cuidar do que realmente importa depois que alguém
parte: das memórias, das histórias, dos momentos bons e ruins. Aquela lápide
apagada, com um punhado de flores secas caídas pode ser de alguém muito mais
querido do que aquele antigo chefe de uma empresa multimilionária que tem dezenas
de placas de condolência de pessoas que nem se importavam na verdade. – Eu não
sei explicar o quão fascinada eu estava por tudo o que ele estava falando. Nem
em um milhão de anos eu conseguiria ter aquela linha de pensamento. Augusto
cruzava as pernas enquanto se recostava na parede logo na minha frente. A ponta
do cigarro pendendo dos dedos tatuados. Um sorriso largado nos lábios finos. Os
olhos castanhos com as órbitas levemente avermelhadas.
- Sabe de uma coisa? – ele voltou a se pronunciar – Nós todos
estamos na corda bamba. Só é necessário um deslize assim – falou aproximando o
dedo indicador do polegar – pra que a gente caia. E não vai ter rede nenhuma lá
embaixo pra te segurar, garota. A vida é muito frágil. Eu não sei se eu tenho
medo de morrer sabe? Tenho mais medo de ter um túmulo cheio de placas de
pessoas dizendo o quanto vão sentir falta de mim sendo que a maior parte delas
me julga pelo meu corte de cabelo ou essa argola no meu nariz – disse zombando
do seu piercing no septo, o que me fez rir baixo. De alguma forma eu sentia que
a minha dança estava começando de novo. Então ele pousou seus olhos sobre os
meus, como se procurando um lugar seguro pra descansar e desenhou um sorriso
antes de voltar a deliciar meus ouvidos- Estamos na corda bamba. E eu não vou
te deixar cair.
Por Mariana J.
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