04 de Março
Talvez eu esteja me apaixonando. Talvez. Tem essa garota que
sempre se senta a uns dois bancos na minha diagonal no ônibus, acho que se
chama Ruby ou algo do gênero. Todas as manhãs ela entra naquela enorme banheira
amarela e barulhenta com a mochila sobre um dos ombros e o olhar baixo, então
ela olha na minha direção com um meio sorriso e segue pra se sentar com os
amigos, sempre do lado da janela. Todas as manhãs eu sinto como se ela
trouxesse o sol para dentro daquele ônibus fedido. Ela tem olhos enormes da cor
que o céu fica quando é quase noite. Aquele azul forte, duro e reconfortante de
algum jeito. Os seus cabelos são cor de cobre e cacheados nas pontas que tocam
o meio de suas costas. Acho que nunca vi alguém com o cabelo mais brilhante na
vida. Acho que não temos nada em comum, ela é perfeita demais para um cara como
eu. Creio que o máximo que temos em comum é que estamos na mesma turma de Cálculo
1. Ainda assim nunca falei com ela. Talvez eu devesse.
22 de Abril
Eu amo a sua voz. Amo as sardas que ela tem nas bochechas.
Amo as ruguinhas que se formam nos cantos daqueles olhos azuis quando ela
sorri. Eu amo o som dos seus passos no corredor do colégio. Amo sua caligrafia,
as letras bem arredondadas e o traço leve quase como se as palavras flutuassem
no papel. Amo até a forma como ela espirra. Eu estou apaixonado cara.
Profundamente apaixonado. Puta merda, não existe nada nela que não seja perfeito.
27 de Abril
Ela acenou pra mim quando entrou no ônibus. Foi só um
cumprimento, eu sei, mas eu não consigo parar de pensar nela. Não deve ser nada
demais, ela provavelmente só me reconheceu da aula de Cálculo, mais nada. Como sempre ela se sentou com os amigos, dois
bancos na minha diagonal, e ficou tamborilando o banco da frente com aqueles
dedos longos com as unhas pintadas em azul claro. Eu pensei em falar com ela
durante a aula, juro que pensei mas perdi totalmente a coragem no mesmo segundo
em que me levantei.
7 de Maio
Ruby se sentou na mesa ao lado da minha na aula hoje. Deus
como o perfume dela é maravilhoso, juro que eu ainda tenho ele impregnando nas
minhas narinas (nossa que romântico). Eu decidi que deveria chama-la pra sair,
um cinema, mini golf ou sei lá o que ela preferisse fazer e passei toda a aula
repassando mentalmente tudo o que iria falar e fazer. Iria me apoiar com uma
das mãos em sua carteia, colocar a outra mão no bolso da calça e perguntar se
ela toparia sair uma hora dessas. Com um sorriso no rosto, claro. Dizem que meu
sorriso é bonito demais pra ficar escondido. De qualquer forma: eu perdi a
coragem. O sinal tocou e eu esperei até que ela estivesse pronta para sair e
fui até sua mesa com todos os movimentos ensaiados. Olhei fundo naqueles olhos
azuis, abri um sorriso e ela retribuiu timidamente então foi aí que minha mente
simplesmente resolveu esquecer tudo o que eu tinha planejado e tudo o que eu
consegui falar foi “você sabe quais são os capítulos pra prova de semana que
vem?”. Patético, eu sei.
30 de Maio
Escutei Ruby conversando com uma amiga sobre as férias de
verão quando passei pela mesa dela no início da aula. Fico triste de pensar que
vou ficar tanto tempo sem poder vê-la mas talvez com um pouco de sorte ela caia
na mesma sala que eu pra alguma matéria pro próximo ano letivo. Talvez algo
mais legal como Inglês. Deus, como eu odeio Cálculo 1... pelo menos tenho a
presença dela pra melhorar a aula.
2 de Agosto
Ela não subiu na enorme banheira amarela hoje. Não sorriu
pra mim. Não sentou ao meu lado na aula de Cálculo. Eu pensei em mandar uma
mensagem pela internet para ela e perguntar se estava tudo bem mas não consegui
sequer apertar o botão para enviar um pedido de amizade. Ao invés disso fiquei
apenas passando as suas fotos de perfil repetidamente e revendo aqueles traços
delicados que eu já decorei a meses atrás. Apesar de tudo Cálculo 2 foi bom,
mesmo eu não entendendo nada do que esse novo professor diz. E ele ainda nos
liberou dez minutos mais cedo porque tinha uma reunião para ir. Eu queria ter
chamado a atenção da Ruby e perguntado de que bandas ela gosta. Ela está sempre
com os fones de ouvido, deve ter um bom gosto musical.
16 de Agosto
Tem alguma coisa errada com ela ultimamente. Eu não
exatamente o que, mas desde que voltamos às aulas ela não me parece ser a mesma
garota. Ela continua absurdamente linda mas existe alguma coisa diferente, algo
está faltando. Os olhos dela parecem não brilhar tanto quanto antes. Seu
sorriso quando entra no ônibus parece menor a cada manhã. Ela parece mais
magra... Ou talvez seja só o efeito das roupas mais largas que ela está usando
agora. Eu não sei, tem alguma coisa errada.
23 de Agosto
Encontrei com Ruby no corredor na saída hoje. Criei coragem
de cumprimenta-la e a sua voz em resposta parecia tão vazia, tão perdida. Era
quase como se não fosse ela. E está definitivamente mais magra. Disse pra mim
que preferiria fazer Cálculo 2 na minha turma mas não conhecia ninguém com quem
pudesse mudar de tempo e soltou um risada que não fez com que rugas aparecessem
nos cantos dos olhos. Desde que as aulas voltaram eu não a vi na sua mesa de
costume na cafeteria do colégio, não vejo ela na fila do almoço, só nos
corredores e quando tenho sorte ainda.
1 de Setembro
Ela entrou no ônibus essa manhã mas eu não senti o sol
entrando com ela. Não necessariamente por ser uma manhã de chuva. Os seus
cabelos cor de cobre estão menos brilhantes, as bochechas menos rosadas, os
olhos continuam belos mas opacos quase da mesma cor do céu nesse começo de
noite. Ela está sempre de mangas compridas. Mesmo quando não está frio. Ruby
ainda sorri pra mim quando me encontra no corredor ou no ônibus mas não fala
muito. Todas as vezes que pergunto se ela está bem ela sempre solta um “ótima,
obrigada por perguntar” mesmo que eu consiga ver que não está. Quase como se
estivesse no piloto automático.
18 de Setembro
É meu aniversário hoje. Ela me cumprimentou no corredor
durante o intervalo e me deu um forte abraço, me desejando toda a felicidade do
mundo, saúde e todas aquelas coisas que se deseja a alguém que está ficando
mais velho. Por alguns segundos enquanto meus braços estavam ao redor do corpo
magro dela e os braços dela envoltos no meu bem mais corpulento eu consegui
sentir o brilho daquela antiga Ruby, aquela que ficava rindo com os amigos no
caminho do colégio mas logo que ela rompeu o abraço eu vi seu rosto pálido e
magro com os olhos emoldurados em um tom arroxeado como se não dormisse bem a
semanas. Quando ela foi arrumar seus cabelos longos após nosso abraço, uma das
mangas de seu suéter desceu alguns centímetros e eu juro que vi alguns riscos
bem vermelhos na sua pele. Honestamente espero que não seja o que eu estou
pensando. Eu quero a velha Ruby de volta, mesmo nunca tendo ela realmente.
26 de Setembro
Ela não foi a aula. Não tenho mais nada a comentar, exceto
que estou a cada dia mais preocupado com tudo isso.
3 de Outubro
Ruby não entrou no ônibus hoje
Nem seus amigos estavam lá. Nenhum deles.
Logo no primeiro tempo o diretor Hawkins entrou na minha
turma de Física e disse que tinha uma notícia triste. Disse que fora informado
do falecimento de Ruby pelos pais dela. Não falecimento, suicídio. Disse que os
pais a encontraram na cama como se estivesse dormindo, com quase dois tubos de
analgéticos vazios caídos ao lado com um pedido de desculpas escrito numa folha
qualquer. Disse que seu enterro seria na manhã do dia seguinte e que não
haveriam aulas pelo resto da semana em respeito a ela. Eu não consigo parar de
pensar nela. Não consigo parar de pensar em como eu deveria ter me levantado e
dito algo para o diretor, a orientadora ou alguém, eu sabia que algo estava
errado com ela e ainda assim não fiz absolutamente nada. E agora não tem nada
que eu possa fazer. Eu nunca a chamei pra ir ao cinema. Não descobri quais eram
suas bandas favoritas. Não fiz absolutamente nada. Simplesmente fiquei sentado
enquanto uma garota maravilhosa se perdia dentro de si. Eu nem ao menos me
esforcei. Eu podia ter pelo menos tentado fazer com que ela me contasse o que
estava acontecendo, mas não.
13 de Outubro
Dez dias depois ainda não faz sentido pra mim. Eu não
entendo como alguém tão perfeita como ela era poderia tirar a própria vida.
Talvez as coisas não fossem tão perfeitas por dentro quanto eram por fora e aos
poucos ela foi mostrando isso. Toda vez que fecho os olhos eu a imagino,
chorando no chão do banheiro, uma lamina em uma das mãos, o corpo coberto de
cortes abertos, o sangue escorrendo grosso e vermelho sobre aquela pele pálida.
Imagino a engolindo um comprimido de cada vez, os olhos vermelhos, o rosto
marcado pelas lágrimas que não param de descer, a mão trêmula escrevendo “Me
desculpem”. Eu não sei ao certo de onde
eu tirei forças para ir ao enterro. Sinto que eu precisava vê-la uma última
vez, ter certeza que aquilo realmente estava acontecendo. A mãe dela chorava
alto abraçada aos ombros de quem eu acredito ser o marido dela e repetia
incansavelmente que queria a menininha dela de volta. Eu olhava em volta e
reconhecia vários rostos de encontros casuais nos corredores do colégio e todos
estavam igualmente abatidos. Os olhos inchados. Todos nós queríamos ela de
volta. Todos nós queremos ela de volta. Mas ela não vai voltar e a cada dia em
que eu não a vejo entrando na enorme banheira amarela é um lembrete disso.
3 de Novembro
Hoje faz um mês desde que eu soube que nunca mais veria a
dona dos olhos mais lindos desse universo inteiro. Eu estava tentando me
concentrar na leitura de Jane Eyre no intervalo quando senti uma mão pousar no
meu ombro e eu tentei não desejar que aqueles dedos fossem dela, por mais que
no meu íntimo eu implorasse por isso. Era Julia, uma das meninas que dividia o
banco do ônibus com Ruby. Ela segurava uma pasta azul escuro nas mãos suadas.
Um azul da cor do céu quando está anoitecendo. “Acho que ela gostaria que você
ficasse com isso”, Julia me disse e me pediu para abrir. Senti meu coração
despencar até meu estômago. Lá dentro estavam dezenas de desenhos, desenhos de
um cara de óculos com cabelo bagunçado e uma pinta na bochecha do lado esquerdo
do rosto. Era ele sentado no banco do ônibus, guardando o material no armário,
se apoiando na mesa com um sorriso besta no rosto, rabiscos de vários ângulos,
várias roupas, várias expressões faciais e por último um com o garoto cercado
de balões de festa com um enorme letreiro escrito “Feliz aniversário” em letras
enormes. Embaixo em letras bem menores eu li um “eu te amo” naquela caligrafia
gostosa e flutuante dela. Eu era aquele garoto dos rabiscos. O desenho de
aniversário datava de 17 de setembro. Um dia antes do meu aniversário. Um dia
antes do primeiro e único abraço que eu receberia dela. “Ela falava de você o
tempo todo. Ela gostava muito de você. De verdade.” a amiga me disse com os
olhos marejados “Só nunca teve coragem de te dizer”. Então eu tentei respirar
fundo, como se assim meu coração voltasse ao lugar e falei quase que só para
mim: “Então nós tínhamos algo em comum afinal”.
Deus, como eu sinto sua falta Ruby...
Por Mariana J.
Por Mariana J.
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