terça-feira, 13 de maio de 2014

Querido diário

04 de Março
Talvez eu esteja me apaixonando. Talvez. Tem essa garota que sempre se senta a uns dois bancos na minha diagonal no ônibus, acho que se chama Ruby ou algo do gênero. Todas as manhãs ela entra naquela enorme banheira amarela e barulhenta com a mochila sobre um dos ombros e o olhar baixo, então ela olha na minha direção com um meio sorriso e segue pra se sentar com os amigos, sempre do lado da janela. Todas as manhãs eu sinto como se ela trouxesse o sol para dentro daquele ônibus fedido. Ela tem olhos enormes da cor que o céu fica quando é quase noite. Aquele azul forte, duro e reconfortante de algum jeito. Os seus cabelos são cor de cobre e cacheados nas pontas que tocam o meio de suas costas. Acho que nunca vi alguém com o cabelo mais brilhante na vida. Acho que não temos nada em comum, ela é perfeita demais para um cara como eu. Creio que o máximo que temos em comum é que estamos na mesma turma de Cálculo 1. Ainda assim nunca falei com ela. Talvez eu devesse.

22 de Abril
Eu amo a sua voz. Amo as sardas que ela tem nas bochechas. Amo as ruguinhas que se formam nos cantos daqueles olhos azuis quando ela sorri. Eu amo o som dos seus passos no corredor do colégio. Amo sua caligrafia, as letras bem arredondadas e o traço leve quase como se as palavras flutuassem no papel. Amo até a forma como ela espirra. Eu estou apaixonado cara. Profundamente apaixonado. Puta merda, não existe nada nela que não seja perfeito.

27 de Abril
Ela acenou pra mim quando entrou no ônibus. Foi só um cumprimento, eu sei, mas eu não consigo parar de pensar nela. Não deve ser nada demais, ela provavelmente só me reconheceu da aula de Cálculo, mais nada.  Como sempre ela se sentou com os amigos, dois bancos na minha diagonal, e ficou tamborilando o banco da frente com aqueles dedos longos com as unhas pintadas em azul claro. Eu pensei em falar com ela durante a aula, juro que pensei mas perdi totalmente a coragem no mesmo segundo em que me levantei.

7 de Maio
Ruby se sentou na mesa ao lado da minha na aula hoje. Deus como o perfume dela é maravilhoso, juro que eu ainda tenho ele impregnando nas minhas narinas (nossa que romântico). Eu decidi que deveria chama-la pra sair, um cinema, mini golf ou sei lá o que ela preferisse fazer e passei toda a aula repassando mentalmente tudo o que iria falar e fazer. Iria me apoiar com uma das mãos em sua carteia, colocar a outra mão no bolso da calça e perguntar se ela toparia sair uma hora dessas. Com um sorriso no rosto, claro. Dizem que meu sorriso é bonito demais pra ficar escondido. De qualquer forma: eu perdi a coragem. O sinal tocou e eu esperei até que ela estivesse pronta para sair e fui até sua mesa com todos os movimentos ensaiados. Olhei fundo naqueles olhos azuis, abri um sorriso e ela retribuiu timidamente então foi aí que minha mente simplesmente resolveu esquecer tudo o que eu tinha planejado e tudo o que eu consegui falar foi “você sabe quais são os capítulos pra prova de semana que vem?”.  Patético, eu sei.

30 de Maio
Escutei Ruby conversando com uma amiga sobre as férias de verão quando passei pela mesa dela no início da aula. Fico triste de pensar que vou ficar tanto tempo sem poder vê-la mas talvez com um pouco de sorte ela caia na mesma sala que eu pra alguma matéria pro próximo ano letivo. Talvez algo mais legal como Inglês. Deus, como eu odeio Cálculo 1... pelo menos tenho a presença dela pra melhorar a aula.

 2 de Agosto
Ela não subiu na enorme banheira amarela hoje. Não sorriu pra mim. Não sentou ao meu lado na aula de Cálculo. Eu pensei em mandar uma mensagem pela internet para ela e perguntar se estava tudo bem mas não consegui sequer apertar o botão para enviar um pedido de amizade. Ao invés disso fiquei apenas passando as suas fotos de perfil repetidamente e revendo aqueles traços delicados que eu já decorei a meses atrás. Apesar de tudo Cálculo 2 foi bom, mesmo eu não entendendo nada do que esse novo professor diz. E ele ainda nos liberou dez minutos mais cedo porque tinha uma reunião para ir. Eu queria ter chamado a atenção da Ruby e perguntado de que bandas ela gosta. Ela está sempre com os fones de ouvido, deve ter um bom gosto musical.

16 de Agosto
Tem alguma coisa errada com ela ultimamente. Eu não exatamente o que, mas desde que voltamos às aulas ela não me parece ser a mesma garota. Ela continua absurdamente linda mas existe alguma coisa diferente, algo está faltando. Os olhos dela parecem não brilhar tanto quanto antes. Seu sorriso quando entra no ônibus parece menor a cada manhã. Ela parece mais magra... Ou talvez seja só o efeito das roupas mais largas que ela está usando agora. Eu não sei, tem alguma coisa errada.

23 de Agosto
Encontrei com Ruby no corredor na saída hoje. Criei coragem de cumprimenta-la e a sua voz em resposta parecia tão vazia, tão perdida. Era quase como se não fosse ela. E está definitivamente mais magra. Disse pra mim que preferiria fazer Cálculo 2 na minha turma mas não conhecia ninguém com quem pudesse mudar de tempo e soltou um risada que não fez com que rugas aparecessem nos cantos dos olhos. Desde que as aulas voltaram eu não a vi na sua mesa de costume na cafeteria do colégio, não vejo ela na fila do almoço, só nos corredores e quando tenho sorte ainda.

1 de Setembro
Ela entrou no ônibus essa manhã mas eu não senti o sol entrando com ela. Não necessariamente por ser uma manhã de chuva. Os seus cabelos cor de cobre estão menos brilhantes, as bochechas menos rosadas, os olhos continuam belos mas opacos quase da mesma cor do céu nesse começo de noite. Ela está sempre de mangas compridas. Mesmo quando não está frio. Ruby ainda sorri pra mim quando me encontra no corredor ou no ônibus mas não fala muito. Todas as vezes que pergunto se ela está bem ela sempre solta um “ótima, obrigada por perguntar” mesmo que eu consiga ver que não está. Quase como se estivesse no piloto automático.

18 de Setembro
É meu aniversário hoje. Ela me cumprimentou no corredor durante o intervalo e me deu um forte abraço, me desejando toda a felicidade do mundo, saúde e todas aquelas coisas que se deseja a alguém que está ficando mais velho. Por alguns segundos enquanto meus braços estavam ao redor do corpo magro dela e os braços dela envoltos no meu bem mais corpulento eu consegui sentir o brilho daquela antiga Ruby, aquela que ficava rindo com os amigos no caminho do colégio mas logo que ela rompeu o abraço eu vi seu rosto pálido e magro com os olhos emoldurados em um tom arroxeado como se não dormisse bem a semanas. Quando ela foi arrumar seus cabelos longos após nosso abraço, uma das mangas de seu suéter desceu alguns centímetros e eu juro que vi alguns riscos bem vermelhos na sua pele. Honestamente espero que não seja o que eu estou pensando. Eu quero a velha Ruby de volta, mesmo nunca tendo ela realmente.

26 de Setembro
Ela não foi a aula. Não tenho mais nada a comentar, exceto que estou a cada dia mais preocupado com tudo isso.

3 de Outubro
Ruby não entrou no ônibus hoje
Nem seus amigos estavam lá. Nenhum deles.
Logo no primeiro tempo o diretor Hawkins entrou na minha turma de Física e disse que tinha uma notícia triste. Disse que fora informado do falecimento de Ruby pelos pais dela. Não falecimento, suicídio. Disse que os pais a encontraram na cama como se estivesse dormindo, com quase dois tubos de analgéticos vazios caídos ao lado com um pedido de desculpas escrito numa folha qualquer. Disse que seu enterro seria na manhã do dia seguinte e que não haveriam aulas pelo resto da semana em respeito a ela. Eu não consigo parar de pensar nela. Não consigo parar de pensar em como eu deveria ter me levantado e dito algo para o diretor, a orientadora ou alguém, eu sabia que algo estava errado com ela e ainda assim não fiz absolutamente nada. E agora não tem nada que eu possa fazer. Eu nunca a chamei pra ir ao cinema. Não descobri quais eram suas bandas favoritas. Não fiz absolutamente nada. Simplesmente fiquei sentado enquanto uma garota maravilhosa se perdia dentro de si. Eu nem ao menos me esforcei. Eu podia ter pelo menos tentado fazer com que ela me contasse o que estava acontecendo, mas não.

13 de Outubro
Dez dias depois ainda não faz sentido pra mim. Eu não entendo como alguém tão perfeita como ela era poderia tirar a própria vida. Talvez as coisas não fossem tão perfeitas por dentro quanto eram por fora e aos poucos ela foi mostrando isso. Toda vez que fecho os olhos eu a imagino, chorando no chão do banheiro, uma lamina em uma das mãos, o corpo coberto de cortes abertos, o sangue escorrendo grosso e vermelho sobre aquela pele pálida. Imagino a engolindo um comprimido de cada vez, os olhos vermelhos, o rosto marcado pelas lágrimas que não param de descer, a mão trêmula escrevendo “Me desculpem”.  Eu não sei ao certo de onde eu tirei forças para ir ao enterro. Sinto que eu precisava vê-la uma última vez, ter certeza que aquilo realmente estava acontecendo. A mãe dela chorava alto abraçada aos ombros de quem eu acredito ser o marido dela e repetia incansavelmente que queria a menininha dela de volta. Eu olhava em volta e reconhecia vários rostos de encontros casuais nos corredores do colégio e todos estavam igualmente abatidos. Os olhos inchados. Todos nós queríamos ela de volta. Todos nós queremos ela de volta. Mas ela não vai voltar e a cada dia em que eu não a vejo entrando na enorme banheira amarela é um lembrete disso.

3 de Novembro
Hoje faz um mês desde que eu soube que nunca mais veria a dona dos olhos mais lindos desse universo inteiro. Eu estava tentando me concentrar na leitura de Jane Eyre no intervalo quando senti uma mão pousar no meu ombro e eu tentei não desejar que aqueles dedos fossem dela, por mais que no meu íntimo eu implorasse por isso. Era Julia, uma das meninas que dividia o banco do ônibus com Ruby. Ela segurava uma pasta azul escuro nas mãos suadas. Um azul da cor do céu quando está anoitecendo. “Acho que ela gostaria que você ficasse com isso”, Julia me disse e me pediu para abrir. Senti meu coração despencar até meu estômago. Lá dentro estavam dezenas de desenhos, desenhos de um cara de óculos com cabelo bagunçado e uma pinta na bochecha do lado esquerdo do rosto. Era ele sentado no banco do ônibus, guardando o material no armário, se apoiando na mesa com um sorriso besta no rosto, rabiscos de vários ângulos, várias roupas, várias expressões faciais e por último um com o garoto cercado de balões de festa com um enorme letreiro escrito “Feliz aniversário” em letras enormes. Embaixo em letras bem menores eu li um “eu te amo” naquela caligrafia gostosa e flutuante dela. Eu era aquele garoto dos rabiscos. O desenho de aniversário datava de 17 de setembro. Um dia antes do meu aniversário. Um dia antes do primeiro e único abraço que eu receberia dela. “Ela falava de você o tempo todo. Ela gostava muito de você. De verdade.” a amiga me disse com os olhos marejados “Só nunca teve coragem de te dizer”. Então eu tentei respirar fundo, como se assim meu coração voltasse ao lugar e falei quase que só para mim: “Então nós tínhamos algo em comum afinal”.
Deus, como eu sinto sua falta Ruby...

Por Mariana J.

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