O céu mudando suas cores e as árvores totalmente sem folhas
formavam o cartão postal ideal. Uma transição de rosa para azul pintava o céu
inteiro com maestria, enquanto à pouca luz da rodovia as árvores sem folhas
pareciam feitas de papel. A garota abraçava os próprios joelhos enquanto
observava o anoitecer sentada no banco traseiro do carro. Seus pensamentos
flutuando na mesma velocidade em que tudo dentro e fora do automóvel escurecia.
Lembrou-se daquela tarde em que andava
apressada pelo centro da cidade. As mãos guardadas nos bolsos do casaco
vermelho escuro, os pés rápidos sobre a calçada, a ponta de seu nariz e o topo
das maças de seu rosto rosadas pelo atrito com o vento frio. Quando se pôs a
aguardar que os carros parassem no semáforo vermelho foi que o viu, do outro
lado da rua. Vestia uma calça caqui, uma camisa xadrez e um pesado casaco por
cima como todo mundo naquele dia. Mesmo com o excesso de roupas dava pra saber
que tinha um ótimo físico. Um pouco de cabelo loiro escuro saia da touca cinza
e lhe cobria a testa. Quando passou pelo rapaz que vinha na direção contrária
nem ao menos conseguiu desviar o olhar. Nunca tinha visto olhos azuis tão bonitos
antes. Foi por segundos, mas ele também a observou com os olhos atentos e um
sorriso enorme no rosto. E passou. E sumiu na multidão.
E ele era belo, de fato, mas nada nele havia chamado tanto a
atenção da garota quanto o seu sorriso. Largo, dentes claríssimos, os lábios
bem desenhados. Um sorriso que conseguiria iluminar qualquer lugar e melhorar o
dia de alguém. Um sorriso que parecia muito com um outro que conhecera anos
antes. Felipe era o extremo oposto de quem vira na rua. Tinha a pele mais
morena, os olhos tão escuros quanto seus cabelos, não era tão forte quanto o
outro, mas o sorriso... Ah, o de Felipe era ainda mais bonito. Luiza e Felipe se
conheceram em um bar por intermédio de João, um amigo em comum com quem ele fazia
aulas de teatro desde a época do colégio. Ele chegou bem depois do horário
combinado vestindo camisa e calça social, finalizada com uma gravata preta
estreita e gel nos cabelos que precisavam ser cortados.
“Eu tava em um casamento cara, desculpa a demora” se explicou enquanto
cumprimentava João e sua namorada, Laís. “Parece
que eu não conheço todo mundo nessa rodinha hoje” disse cutucando o amigo
com o cotovelo, sem tirar os olhos de Luiza. Depois que foram devidamente
apresentados, o rapaz não saia de seu lado por nada, apenas para ir até o
balcão pegar algo para beber. “Quer uma
cerveja? Dose? Caipirinha? Eu pego pra você.” Disse passando uma das mãos
nos cabelos muito longos e loiros da garota que respondeu: “Eu aceito uma água” “Água? Mesmo?” “Sim, eu não bebo” ela ria da
expressão incrédula do rapaz. “Porra...
Porque?” ele perguntava enquanto virava seu corpo na direção do bar. “Eu só não vejo a necessidade de beber pra
me divertir.”, Luiza respondeu em tom de riso. Era sempre assim. “Você é uma QUA-DRA-DA ok? Já trago a sua
água.” Felipe respondeu sorrindo e se afastando de onde estavam antes.
Mais tarde o rapaz saia do banheiro masculino com os cabelos
desarrumados propositadamente, tentando sem nenhum êxito dobrar as mangas da
camisa que vestia até a altura dos cotovelos. “Lu, me dá uma ajudinha aqui?” perguntava com aquele sorriso divino
nos lábios enquanto pegava a garrafa de cerveja pela metade que havia deixado
com João. Luiza desabotoou os pulsos da camisa e começou a dobrá-las, sentindo
os olhos do rapaz rastreando cada ponto do seu corpo. “Espera aí, vou arrumar a gola. Essa gravata tá séria demais assim.”
Completou antes de lançar as mãos ao pescoço do moço e abrir os dois primeiros
botões do colarinho da camisa cinza, e puxar a gravata alguns centímetros para
baixo. Quando voltou a olha-lo, Felipe acabara de tomar um gole grande de
cerveja direto da garrafa e iluminava o bar na penumbra com seu sorriso. “Obrigado” completou passando a mão
livre nos cabelos bagunçados.
A banda tocava “I should’ve known better” dos Beatles e
Luiza cantava cada palavra como se a música estivesse gravada em si. Felipe por
outro lado cantarolava uma outra música, enquanto batia os pés no chão grudento
de bebida do lugar. “Você sabia que essa
música tem uma versão em português? Não é exatamente uma versão já que agora eu
vejo que as letras não tem nada a ver. É ‘Renato e seus Blue Caps’ mas é legal”
O rapaz falava ao ouvido da garota, tentando abafar todo o som do ambiente
lotado. “Menina linda eu te adoro.
Menina pura como a flor” ele cantarolava ao mesmo tempo que
ela cantava: “That when I tell you that I love you, oh, you're gonna say you love me too”.
Eles
eram extremo opostos em tudo. Ela era tão branca que nem se passasse uma semana
tomando sol direto, não conseguiria ter o tom moreno da pele de Felipe. Ele era
extrovertido, do tipo que tira milhões de fotos com os amigos, fazendo careta
em todas elas (o que de fato aconteceu naquela noite) e ela sempre fora mais
reservada. Ela era louca pelo quarteto de Liverpool, ele era viciado pelos
Stones. Ela cursava humanas, ele era da área de exatas. Ainda assim os dois se
entendiam de um jeito quase improvável.
Era
o intervalo do show e Laís e Luiza foram até o balcão pedir mais bebidas para o
grupo em que estavam. “E aí Lu, gostou do
Fê?” a garota muito alta e de cabelo Chanel perguntava enquanto esperava
sua caipirinha de saquê e morango. “Aham,
ele parece ser muito legal” disse cruzando olhares com o rapaz que a
esperava perto do palco baixo. Felipe conversava com João, encostado em uma das
enormes caixas de som. Felipe sorriu. Luiza sorriu. Laís lhe deu um cutucão na
costela e uma olhadela de quem sabia o que ia acontecer. Ela sempre sabia.
Voltaram
ao palco carregando um balde cheio de gelo e seis garrafas de cerveja bem a
tempo dos integrantes da banda voltarem aos seus devidos lugares. Quando os
primeiros acordes de “And I love her” começaram a soar, as garotas se
entreolharam e no outro segundo já estavam abraçadas fingindo chorar. “Olha aqui, se você não se importa Lu eu vou
roubar a minha namorada pra dançar um pouco ok?” João disse mais para
Felipe do que para Luiza, propriamente. Foi questão de segundos até que o
garoto a puxasse para dançar também. As mãos dele na cintura dela. As mãos dela
ao redor do pescoço dele. E era como se o resto do mundo tivesse parado por um
instante. “Eu posso te roubar um beijo?”
ele perguntou encostando seu nariz ao dela, seus olhos escuros perto demais dos
verdes de Luiza. “Se me pedir não é
roubado” ela disse segundos antes que
ele avançasse sobre seus lábios. Ficaram um nos braços do outro até o dia
começar a raiar e não haver como prolongar mais aquilo. “Eu vou estar apresentando uma peça amanhã às 19. Laís sabe onde é. Ia
amar te ver lá.” Felipe dizia ainda com as suas mãos puxando o corpo da
garota para si, mesmo sabendo que era hora de partir. “Eu vou tentar ir”. E se despediram com um último beijo.
Luiza
tinha um compromisso de família do dia seguinte. Felipe não a viu na peça.
Nunca mais se encontraram no bar, nem em festas. Se viram por segundos em
pequenas apresentações de teatro mas nunca trocaram nada além de sorrisos
carregados de saudade daquela noite. As vezes a vida funciona assim. E dentro
daquele carro escuro Luiza imaginava se algo seria diferente hoje caso tivesse
ido à apresentação de Felipe. Mesmo com o peito pesado de saudades, a garota
respirou fundo e deixou que tudo o que pensava deixasse seu corpo junto ao ar
que expirava pelos lábios. Então soube que aquela noite ficara guardada para
sempre em sua memória e em seu coração e simplesmente seguiu em frente. Assim
como Felipe.
Por Mariana J.
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