Parou em frente ao portão branco da casa dos pais sentindo o
coração afundando no peito magro. Podia muito bem fazer seu caminho garagem
adentro e ir de encontro com seu lar quente e acolhedor, porém não tinha forças
suficientes para fazer a curva à esquerda com seu carro compacto. Resolveu que
seria melhor estacionar algumas casas a frente até que se sentisse melhor.
Saltou do automóvel deixando o casaco justo ao corpo. O vento praticamente
cortava o pouco de pele a mostra. Tudo o que se ouvia naquela rua de classe
média era o som do solado das botas na altura do tornozelo que a garota
calçava, de encontro com o asfalto. Da forma mais silenciosa que conseguiu,
fechou a porta do carro e foi se sentar sobre o curto capô do mesmo. Inspirou e
expirou profundamente, conseguindo ver claramente o vapor se condensando em
pequenas nuvens esbranquiçadas à pouca luz dos postes. Lembrou-se de quando era
muito pequena, pequena demais para entender como aquela história de vapor
condensado funcionava, e levava um cigarro imaginário aos lábios fingindo que
fumava.
Com as articulações da mão doendo e os dedos gélidos, buscou
o maço de cigarros em um dos bolsos laterais do casaco verde militar e
acinturado que vestia. Enquanto tentava produzir uma mísera chama com seu
isqueiro quase vazio, ria da situação. Aos seis anos de idade brincava que
fumava. Aos vinte, fingia que não. “Tinha gente pra caramba fumando lá, mãe”. O
álibi de sempre, preso na ponta da língua. Checou o horário no celular. Exatos
trinta e sete minutos antes ela estava rindo e se despedindo dos amigos na
saída do bar, e agora não sentia nem de leve a felicidade de ter passado tanto
tempo com pessoas queridas. Não sabia explicar nem a si o que a impedia de
estar agora vestindo seu pijama flanelado e se escondendo embaixo das cobertas.
O peito pesado, a sensação de vazio, de sufocamento. Já tinha se sentido assim.
Sentia que estava
construindo diversas muralhas dentro de si. A cada dia mais distante de quem
era não muitos anos atrás. A cada dia mais perdida entre seus problemas
camuflados e de suas desculpas ruins. Não sabia como parar a construção, nem
como colocar as barreiras a baixo. As mãos tremendo, a falta de ar, o coração
acelerado. Queria conseguir se sentar no meio daquela rua deserta e acordar
toda a vizinhança com seu choro descontrolado e ensurdecedor, mas apenas uma
lágrima se manifestou. Uma lágrima tão solitária e amarga quanto quem a
derramara. A cada metro que se distanciava do bar em que antes estava, sentia
toda a alegria compartilhada que antes esquentara sua noite se esvaindo e
deixando no lugar nada mais do que solidão.
Lembrou-se de quando tinha 16 anos e do quanto queria se
zerar naquela época. Ainda conseguia sentir o gosto amargo de cada um dos
comprimidos pouco antes de engoli-los um a um, desejando não ser acordada na
manhã seguinte. Lembrou-se das gotas de sangue derramas de madrugada que ainda
hoje manchavam seu cobertor favorito. Lembrava também vividamente da forma que
abraçara seu pai com o corpo tremulo, ao lado do tumulo da avó e como jurou
naquele mesmo dia que nunca mais pensaria ao menos em se zerar novamente.
Alguns anos depois não sabia dizer se realmente não queria partir ou se estava
apenas tentando poupar seus entes queridos de todo o trabalho e dor que sua partida
traria.
Já estava no quinto cigarro quando notou que o céu começara
a acordar e assim em breve, também seus pais. Puxou uma das mangas pesadas do
casaco até a altura de seu cotovelo e apagou o que restava do papel e tabaco em
brasa em sua pele. Nem mesmo a queimadura fizera com que sentisse algo. Gemeu
baixo assim que o calor do cigarro encontrou sua pele gelada. Já sabia o que ia
acontecer, não era sua primeira vez. Segurou o toco quase apagado contra o
braço por alguns segundos, esperando que aquilo fizesse com que colocasse todas
as lágrimas que sentia pesar nos olhos para fora, mas nada aconteceu. Apenas
mais uma marca. Apenas mais uma cicatriz para sua coleção. Talvez a guerra
civil dentro de sua cabeça estivesse recomeçando depois de quatro anos de
trégua. Talvez aquela só fosse sua rotina voltando. Hábitos ruins não morrem.
Por Mariana J.
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