terça-feira, 19 de agosto de 2014

Matheus

Depois de tanto tempo, dias de chuva ainda me lembram você. O cheiro do asfalto molhado me lembra do teu abraço e teu perfume grudando nas minhas roupas e me embriagando mesmo quando longe de você. Me lembra todas aquelas tardes que passamos largados no chão da sua sala, dividindo aquele seu cobertor verde escuro e vendo um filme de terror na TV – mesmo eu odiando o gênero, você sabe. 
Eu nunca te dei uma explicação, eu sei disso. Nunca me despedi propriamente, e de alguma forma eu acho que foi melhor assim. Fui egoísta, admito, mas eu sempre fui e você nunca deixou de apontar isso como um dos meus grandes defeitos e eu concordo plenamente. Não quero nunca que você pense que eu fui embora porque você fez algo errado – não, isso nunca aconteceu. Ah garoto você nunca foi perfeito e é exatamente isso que eu gosto tanto em você. Sempre achando as suas bandas favoritas tão superiores às minhas, o seu mau humor matinal, suas experiências culinárias que nem sempre davam certo (ainda assim sempre ficava gostoso, nunca entendi), a implicância com o meu apetite por coisas agridoces - “Cara, para de inventar... Sério, não passa maionese em bolacha recheada isso é nojento. Puta merda". 
Se um dia te disserem que eu nunca te amei eu espero que você saiba que é mentira. Eu te amei, ah se amei. Amei seus olhos castanho esverdeados, seus cabelos espantosamente bem cuidados para um cara, as veias saltadas das suas mãos, a marca de queimadura de sol que você tem nas costas e a sua barba com aquela falha eterna logo embaixo do queixo por causa daquela sua cicatriz de quando caiu de bicicleta indo me pegar no trabalho. Amei cada referência a filmes/séries/bandas que você fazia mesmo que por vezes eu não pegasse de primeira, admito. Eu amei cada risada que você deu, todas as vezes que me observou de canto de olho, todas as camisetas que me emprestou pra usar de pijama, sua mania de organização e os sermões que você me passava todas as vezes que deixava algum sapato meu largado por aí. Eu amei cada pequena parte de você, e o melhor de tudo, sei que o sentimento foi recíproco.
Talvez esse sentimento de “amar e ser amada” fosse o que eu mais gostasse em nós dois, mas um dia isso não foi mais o suficiente. Seus beijos não tinham mais o mesmo gosto, e eu já não me sentia ansiosa pela próxima vez em que eu poderia deixar me perder em você. Tudo ao nosso redor continuava exatamente igual, mas não eu. Por isso eu digo que nunca foi culpa sua. Eu simplesmente tinha que ir. Caso eu continuasse com a minha rotina, subindo os 9 andares, beijando os teus lábios, brincando com o seu gato, rindo das suas piadas, mais cedo ou mais tarde iríamos nos separar; e acredite: Ia ser bem pior do que foi. Teríamos mais uma daquelas brigas em que ninguém fala nada realmente relevante e tudo o que se consegue são dois corações feridos e arrependidos. Então eu decidi que era hora de ir. Me levantei da tua cama, peguei minhas coisas e fui. Fui.
Na correria acabei me esquecendo daquele meu lenço vermelho com bolinhas, e se bem te conheço ele deve estar guardado ainda. Você guarda tudo como se assim ainda conseguisse dominar o que aqueles objetos representam pra você, mas ainda assim, você nunca me dominou. Eu nunca me deixei ser dominada. Nem por você, nem por ninguém. Talvez esse seja outro defeito meu. Nós sempre fomos tão diferentes, será que agora você consegue enxergar? Seu erro foi se apegar demais a mim. Eu nunca te prometi que ficaria, e mesmo quando partia eu nunca prometia voltar. Você acreditava que sim, até que eu não voltei. Eu li suas mensagens. Recebi suas ligações. Vi seus recados. Mas não existia nada que você pudesse dizer ou que eu pudesse fazer que mudasse o que eu sentia e o quanto eu sabia que do seu lado não era o meu lugar.
Falo de você mas ainda guardo aquela palheta vermelha que me deu quando eu disse que queria aprender a tocar violão. Pior ainda, falo de você mas estou aqui te escrevendo essas linhas que você nunca vai ler pelo simples prazer de tirar isso do meu peito. Larguei o instrumento, larguei meu lenço favorito, larguei você. E apesar da certeza que eu ainda tenho no meu íntimo eu sinto a sua falta. Todos os dias. As vezes ainda espero ouvir sua voz no telefone me dizendo que está muito gripado e precisa de reforços, ou te ver vestindo aquela combinação de camiseta dos Smiths e samba canção que você sempre usava enquanto andava pelo seu pequeno – e muito bem arrumado – apartamento. Sinto falta da sua paciência com as minhas manias bobas e a sua voz de sono pela manhã. Mas eu fui embora. Larguei tudo e recomecei do zero. Saí do meu antigo endereço, mudei o número do meu celular, trabalho em outro lugar, pintei meus cabelos de preto (as vezes ainda me pergunto o que você acharia deles), mas a única coisa que eu aparentemente nunca consigo deixar totalmente é você. Mas eu não te amo mais como amava antes. Espero que você sinta o mesmo.

Com um carinho enorme,

Giulia. 

Ps: Sinto muito pelos cigarros mentolados, sei que você comprava por mim. 

Por Mariana J.

n/a: Tá lembrado da Giulia? Pois é, o Matheus já falou um pouco dela aqui e aqui.Corre lá caso você ainda conheça, e se já conhece pode ler de novo, tá liberado haha. 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Coffee and cigarettes

Então lá estava eu, chorando no camarim depois de ficar meia hora na cadeira da maquiadora.  Faltavam 15 minutos pro começo das gravações do dia e eu, chorando porque meu café estava frio. Ridículo, eu sei. Eu andava tão estressada e cansada que qualquer coisinha me parecia o fim do mundo, até o fato do meu Starbucks ter esfriado enquanto me esperava sair das mãos da maquiadora. Limpava as linhas escuras de lápis de olho que desciam dos meus olhos com um punhado de lenços de papel quando bateram à porta do camarim. Tratei de parecer normal antes de autorizar a entrada.
- Oi Ally – Tyler colocou a cabeça cheia de cabelos cor de laranja porta adentro – se importa se eu entrar? – Fiz que não com a cabeça e me voltei para o espelho novamente para tentar concertar os estragos.
- O que aconteceu? Tava chorando? – me perguntou enquanto puxava a cadeira ao lado da minha pra mais perto.
- É, eu só... Eu só tô um pouco cansada. Demais. Só preciso de uma longa noite de sono. – forcei um sorriso enquanto detinha algumas lágrimas que queriam escapar. Eu não dormia direito desde que Josh havia ido embora. Isso significava: dois meses. Estava vivendo na base de café e cigarro. Hábitos que por acaso eram dele, não meu. Mas ao contrário de mim, Joshua podia dormir por três horas e acordar com energia suficiente pra puxar um trem de carga. Eu só tinha forças pra chorar. Estava preenchendo cada pequeno buraco que a saudade fazia no meu peito com litros de café puro e maços de Marlboro.  O café sem açúcar não era amargo, tinha gosto dos lábios dele. O misto de fumaça e perfume das minhas roupas não era ruim, era cheiro de casa mas não tão bom quanto o dele.
- E você se importa em me dizer o motivo dessa choradeira toda? Talvez eu possa ajudar – Tyler disse antes de abrir um sorriso. Só o sorriso dele já me deixou melhor.
- É patético na verdade. Meu café esfriou. E ele tá nojento agora. E não dá tempo de corrigir a maquiagem e pegar outro. – eu ria enquanto começava a arrumar as camadas de corretivo e pó do meu rosto. Falar o que me fez estragar a maquiagem em voz alta fez o motivo parecer ainda mais ridículo.
- Eu sinto muito pela sua perda – Ty colocou as mãos sobre seu peito, fazendo cara de pena, o que me fez rir ainda mais - mas se você quiser podemos ir ao Starbucks depois da gravação pra você pegar um café quente e descansar um pouco. O que acha?
- Eu acho uma ótima ideia. – sorri para ele no reflexo do espelho enquanto reaplicava um tanto de rímel.
- Agora eu vou deixar você terminar de se arrumar porque daqui a pouco temos que gravar e eu não quero beijar ninguém com os olhos borrados. – Por um segundo eu me esqueci do que íamos filmar naquela manhã. O beijo. Especial de dia dos namorados.  Senti um arrepio me descer a coluna só de imaginar como seria colocar aquela cena em prática. – Se bem que você fica deslumbrante de qualquer jeito... Te vejo em cinco minutos. – Ele completou antes de sair pela enorme porta branca.
E onde vai parar o ar quando se precisa dele?
***
Minha maquiagem estava arrumada. Minhas mechas roxas no lugar. Vestia um vestido azul claro acinturado que batia a quase um palmo dos meus joelhos e um par de all stars brancos. De onde eu estava já conseguia ver Tyler se posicionando. A camiseta branca, os jeans escuros, os cabelos ruivos precisando de corte, a barba rala cobrindo o rosto. Sorriu quando me viu na lateral do cenário. Apenas acenei e fingi que relia meu script.
Rainbow chegava possessa ao apartamento de Max porque ele havia mentido para um rapaz com quem ela havia marcado um encontro no dia, dizendo que ela estava doente e não poderia ir. Eles gritam um com o outro até que acabam aos beijos. A cena seria bem mais fácil se eu não tivesse um namorado em outro continente ou se Tyler não fosse tão bonito, mas fazer o que. O trabalho tinha que ser feito. Quase que fingi um ataque cardíaco pra não ter que gravar. Larguei os papeis em um canto e fiz um breve aquecimento. Estava rezando pra não ter que repetir a cena, pelo menos não muitas vezes. Pra ser honesta eu estava morrendo de medo de gostar de beijar Tyler, o que me traria muitos problemas.
As câmeras começaram a rodar.
Eu respirei fundo e fui.
- COMO VOCÊ OUSA? – Entrei aos berros (Rainbow na verdade) no apartamento, taquei a bolsa que carregava em um dos ombros sobre a mesa de centro e parei de braços cruzados ao lado de Tyler (Max na verdade) que estava esparramado no sofá bege.
- Rainbow! Que surpresa! Pode entrar, fique a vontade. – Ele disse em direção à porta com um sorriso quase maldoso no rosto.
- COMO. VOCÊ. OUSA? – Repeti pausadamente com uma das mãos no rosto e a outra na cintura.
- Do que você tá falando Rain? – A cara de inocente que ele fazia era impagável. Tyler é um baita de um ator, devo dizer.
- OOOOH, VOCÊ SABE MUITO BEM DO QUE EU TÔ FALANDO MAX. – Falava num tom risonho-  Quem você pensa que é pra atender meu telefone? Anh? E ainda falar que eu não vou a um encontro? Você não é meu pai, mocinho. – Meu indicador chacoalhando freneticamente na direção da cara de “puts, fui pego” de Ty me fez querer cair na risada. Ao invés disso cobri o rosto com as duas mãos e dei um grunhido.
- Rain eu posso expl.... – Ele se levantava devagar com as mãos à frente do corpo como se quisesse se proteger.
- NÃO MAX VOCÊ NÃO PODE EXPLICAR NADA! Eu fiquei quase duas horas esperando o Math no restaurante. Duas horas Max! Você tem ideia do que é isso? Você tem ideia de como eu me senti envergonhada? Fiz papel de boba pra depois ligar pro cara e descobrir que OPA! APARENTEMENTE NÃO TINHA ENCONTRO NENHUM. – Estava quase chorando e dessa vez era num momento importante. No fim minha sensibilidade extrema servia pra alguma coisa. Me sentei onde Tyler estava antes e completei com o rosto escondido nas minhas mãos: - Deus, eu me sinto tão idiota.
- Rainbow, eu sinto muito, eu posso explicar... – Tyler se sentou ao meu lado no sofá de três lugares e colocou uma das mãos enormes sobre minha coxa.
- Sério Max? Pode mesmo? Então me diz! Me diz o que passou nessa tua cabeça pra achar que isso era uma boa ideia! – Levantei rispidamente indicando sua cabeça com a mão e logo depois levei os braços cruzados à frente do corpo. A expressão de impaciência.
Segundos de silêncio mortal. Comecei a bater a ponta do all star sobre o carpete. Ele olhava para o chão com as mãos entrelaçadas. Achei que talvez Ty tivesse esquecido a fala seguinte então tentei chama-lo de volta.
- VAI MAX, ME DIZ! – Não sei se por susto ou se já estava esperando que eu dissesse algo, mas ele virou o rosto tão rapidamente para mim assim que eu terminei de falar que juro que meu coração deu um salto.
- EU TE AMO RAINBOW.  – Ele levantou do sofá em um pulo e ergueu os braços como se se rendesse - EU TE AMO E FOI POR ISSO QUE EU NÃO PODIA DEIXAR QUE VOCÊ SAÍSSE COM OUTRO CARA NA MERDA DO DIA DOS NAMORADOS. SÓ A IDEIA DE QUE VOCÊ PODERIA SAIR COM ELE E FICAR TODA “ACHO QUE ELE É O CARA” JÁ ME FAZIA QUERER VOMITAR. EU SÓ NÃO PODIA FAZER ISSO OK? SATISFEITA? – A cena estava infinitamente melhor do que eu esperava. Tyler estava pegando fogo. E isso não é um trocadilho muito ruim com a cor dos cabelos dele. Ele estava agora de costas pra mim, passando uma das mãos na nuca cheia de fios ruivos e sardas.
- Por que... Você não me chamou pra sair antes? – Minha voz parecia mais um sussurro do que qualquer coisa.            Meus braços agora pendiam aos lados do meu corpo e meus dedos brincavam com a barra do meu vestido. Sentia que estava fazendo a mesma cara de quando Josh me disse que ia pra Londres.
E então aconteceu. Tyler correu na minha direção e me envolveu em seus braços. Antes que pudesse pensar em qualquer coisa ele já me beijava intensamente. Seu corpo me empurrava para trás e meu pés quase não tocavam o chão mas Tyler estava totalmente no controle da situação.  Enquanto minhas mãos pareciam presas a seu cabelo, conseguia sentir que ele me segurava as costas com um dos braços enquanto a mão livre passava do meu rosto e nuca para minha cintura, meu quadril e de volta para nuca. Provavelmente o vestido até subiu de leve. Só posso dizer que aquilo não foi um beijo cinematográfico em universo algum. Aquilo foi real. Foi intenso. Quando estava prestes a me entregar me lembrei de onde estávamos e que provavelmente o beijo já estava bem mais longo do que deveria então me desvencilhei rapidamente de Tyler com uma expressão de “O que foi isso?” carimbada na minha cara - não sei se era uma reação de Rainbow ou minha mesmo.
- E-Eu... Já... Já vou. – Arrumei rapidamente um pouco do meu cabelo e alisei a saia do vestido enquanto quase corria para fora do apartamento, antes de bater a porta.
Dei alguns segundos para que Tyler tivesse tempo de voltar a se sentar e apoiar a cabeça nas costas do sofá para que eu pudesse entrar afobada no apartamento.
- A bolsa... – A puxei da mesa pela alça e no segundo seguinte já estava batendo a porta novamente. Eu estava tão vermelha que achava que podia explodir.
“CORTA!” ouvi o diretor gritar. “Vocês dois são perfeitos juntos. A cena ficou incrível, não tem o que melhorar. 5 minutos pra próxima.”
***
Tyler e eu estávamos andando até o Starbucks que ficava a umas três quadras do estúdio e minha mente ficava divagando dos braços cheios de sardas daquele que caminhava comigo até a metade do meu coração que tinha partido para outro continente.
- Terra para Allison, Terra para Allison. Você pode me ouvir? Câmbio. – Ele brincou fazendo a voz ficar chiada como se falasse por um walkie talkie. Eu ri e bati meu cotovelo em suas costelas de leve. Na verdade foi um pouco abaixo provavelmente. Altura, vocês entendem né.
- Desculpa Ty, – Respondi passando uma das mãos na testa tentando espantar todos os pensamento – culpa do sono. Preciso de algo com café logo.
- Você não disse “câmbio”. – Ria passando seu braço direito sobre meus ombros.
- Você é impossível.

Dividíamos uma mesa para dois ao lado da enorme fachada de vidro do café. Tyler tomava um chá gelado grande enquanto eu me contentava com um mocaccino tall, depois de um longo sermão vindo de Tyler sobre como se eu queria dormir direito deveria diminuir um pouco a quantidade de cafeína da minha vida. Ah se ele soubesse que o culpado pela minha insônia não era alguns copos de café...
- Estou orgulhoso do nosso trabalho de hoje. – Ele disse com a lateral do corpo encostada no vidro que nos separava do lado de fora. Um enorme sorriso no rosto.
- Fico feliz de termos conseguido acertar de primeira. – Respondi brincando com o copo de isopor com meu nome escrito à caneta sobre a mesa.
- Devo dizer que você beija muito bem. – Quando ergui meus olhos para observa-lo, Tyler estava mordiscando a ponta do longo canudo verde e me lançando um olhar quase que pervertido. Acertei um dos pequenos pacotes de açúcar que estavam em um canto da mesa bem no meio da cara dele que riu e lançou de volta para mim, me acertando o ombro.
- Sério Tyler, você é impossível.

Voltamos para o estúdio, onde o carro de Joshua me esperava para voltar para casa. Ele me pedira para ficar usando o carro já que não tinha motivo para despachá-lo pra Inglaterra e então, ficaria guardado na garagem da casa do pai. Meu colega de trabalho e eu já havíamos nos despedido e eu buscava as chaves do carro dentro da minha bolsa quando Tyler me chamou da entrada do estúdio e veio correndo até mim.
- Ally, tem planos pra amanhã? – Ele estava levemente afobado por ter corrido até o outro lado do estacionamento. As bochechas rosadas, assim como seu pescoço.
- Amanhã... – “Sábado” Ty disse risonho quando notou minha confusão para lembrar em que dia da semana estávamos – Ah tá, nenhum plano, por quê?
- Então o que você acha, só como amigos, vermos um filme? Nesse fim de semana?
- Tudo bem. – Não consegui não sorrir. O sorriso tímido dele era a coisa mais fofa do mundo, nem parecia que estava me agarrando algumas horas atrás. “Ele tava atuando” Charlie diria. Aquilo não foi atuação. Mesmo.
- Okay. – Respondeu enquanto esfregava as mãos e sorrindo foi andando de costas de volta para onde estava, até que acabou trombando em um dos carros estacionados. Claro que eu ri. – Te mando uma mensagem mais tarde. E vê se dorme direito.
- Farei o possível. – Disse com a cabeça para fora da janela do carro antes de partir de volta para casa. Eu tinha muito o que contar pra Charlotte, ah se tinha.

***
Quando cheguei em casa encontrei Charlie se maquiando de pijama no banheiro que compartilhamos. Me disse que tinha uma festa de aniversário de alguém com quem ela trabalha na revista. Desde que a conheci, tantos e tantos anos atrás, Charlie raramente ficava em casa numa noite de sexta – feira. Eu já era o oposto. Sempre amei programinhas mais caseiros, mesmo que o programa em questão seja chamar todos os meus amigos pro ap e ter que me virar com a bagunça mais tarde. As noites de Sexta são sempre iguais nessa cidade.
- Tem certeza que não quer ir comigo Ally? – Minha colega de apartamento me perguntava, concentradíssima enquanto tentava passar cola em um par de cílios falsos.
- Aham. Não tô no clima pra festa. – Eu estava sentada com as pernas esticadas no chão do corredor, bem em frente à porta do banheiro em que ela se arrumava – Fora que vou esperar pra ver se o Bonitão – apelido carinhoso de Charlie para Joshua – vai me ligar. Ou se eu ligo pra ele, sei lá.
- Ah já tava esquecendo, ele ligou uma meia hora atrás. Avisei que você ainda não tinha voltado do trabalho e ele disse que voltava a ligar mais tarde. – Depois de notar minha cara de repreensão por ela não ter me avisado isso antes, respondeu fazendo careta enquanto tentava colocar os cílios postiços – Desculpa amorzinho... Ei, pode me ajudar aqui?
Me levantei reclamando de cada milímetro dolorido do meu corpo até que consegui me por de pé por completo. Nem 22 anos nas costas mas agia como se tivesse 80. Como Charlie é um pouco – 10 centímetros? – mais alta do que eu, achei que era uma ideia melhor me sentar sobre a bancada da pia.
- Você tá bem? Tô te sentindo meio aérea. – É incrível como Charlotte consegue notar as coisas sem que ninguém diga nada. Ela é extremamente perceptiva, não só comigo, com todo mundo.
-Eu sei lá... Tem muita coisa acontecendo na minha cabeça ao mesmo tempo entende? Não dá pra fazer tudo funcionar ao mesmo tempo. – Retirei com cuidado a cola para cílios quase seca e reapliquei uma pequena quantidade enquanto minha amiga afofava os cachos largos que fizera nos cabelos loiros.
- Saudades do Bonitão? – Eu não conseguia não rir quando ela chama Josh assim.
- Também. Eu acho que tô um pouco confusa com umas coisas. Fecha o direito. – Disse antes de começar a aplicar aquele negócio enorme nos cílios dela que fez uma leve careta de confusão.
- Confusa com o que?
- Eu meio que beijei o Tyler hoje. – E então Charlotte quase chocou o topo de sua cabeça bem no meu nariz. Por sorte me esquivei antes disso.
- O QUEEEEEEEE? ALLISON? O QUE? – Ela gritava com os olhos arregalados e os lábios em um O enorme.
- FOI PRA SÉRIE CHARLOTTE, SEGURA AÍ. – Respondi rápido com os braços para o ar.
- Ah então foi aqueles beijos falsos? – Dava pra notar o desapontamento na voz dela, quase senti dó. Quase colei minhas costas ao espelho antes de terminar de falar.
- Aquilo não foi um beijo falso em mundo algum Charlie. Não. Mesmo. – Agora estávamos em paredes opostas do banheiro. Charlie me olhava boquiaberta e com as mãos abertas sobre as bochechas.
- E você? –Antes que eu pudesse perguntar “E eu o que?”, ela completou: - Você correspondeu o beijo?
Não sabia direito o que responder. Não conseguia nem mesmo me lembrar como meu corpo reagiu naquele momento, só conseguia lembrar da textura de seus lábios, dos meus pés mal tocando o chão e do arrepio que percorreu meu corpo inteiro quando ele tocou minha nuca pela primeira vez.
- Hum... Um pouquinho? – Soltei no menor tom de voz do mundo. Charlie a essa altura estava quase se rasgando na minha frente. Não sabia dizer se estava abismada, brava comigo ou o que.
- E ele beija bem? – De todas as coisas que eu imaginava que ela diria essa foi de longe a única que eu não esperava.
- Muito... – A respondi bufando e olhando pro teto. – Vem aqui pra eu colocar o outro, você tem compromisso. – Enquanto me apressava a retirar a cola seca do outro conjunto assustadoramente volumoso de cílios postiços e depois reaplica-la, voltei a contar meus problemas para a minha amiga muito bem arrumada. – Depois disso eu: Não. Consigo. Tirar. Aquele. Babaca. Ruivo. Da. Minha. Mente. E enquanto estávamos lá eu quase me esqueci do motivo de estarmos fazendo aquilo entende? Eu me senti um lixo depois daquilo... Charlie, eu traí o Josh? Seja sincera por favor.
- Olha Ally, eu não diria que isso foi uma traição. Você é uma atriz não é? Só estava fazendo o seu trabalho, seu colega de cena apenas se aproveitou da situação. Você não podia parar a cena e fazer um escândalo pela língua dele estar dentro da sua boca né? – Eu estava começando a chorar segundos antes dela me soltar essa. Comecei a rir e concordei com a cabeça enquanto tentava desgrudar alguns pedacinhos de cola seca do meu dedo indicador. – Então! Não precisa chorar ok? Você só deve estar um pouco carente, nada mais.
- É... Deve ser isso mesmo. – Nunca gostei de manter contato visual com qualquer pessoa quando eu estava chorando ou prestes a fazer isso, então mantive meus olhos na calça jeans que eu vestia.
- Você ama o Josh, não ama? – Charlotte me perguntou, me fazendo erguer o olhar. Não consegui segurar algumas lágrimas teimosas e concordei com a cabeça. – Então! Você não tem com o se preocupar ok? Vai dar tudo certo. Agora desce pra eu te dar um abraço, sua baixinha.

E então eu estava largada no sofá da sala escura. Um filme aleatório passando na tv. Meu celular com uma foto de Josh sobre meu colo. Um resto de yakisoba do jantar sobre a mesa de centro. Estava me sentindo como se sofresse de abstinência. Mesmo tendo ficado horas ao telefone com Joshua era como se não nos falássemos há dias a fio. Só a voz dele não era mais o suficiente pra mim. Eu precisava sentir aqueles lábios nos meus novamente. O hálito quente ao pé do meu ouvido, os braços que me seguravam forte, os olhos escuros mais profundos que eu já conheci. Eu precisava dele inteiro, não suas partes. Precisava de Josh. Só dele. Esperava que Sábado fosse o dia que tudo ficasse tudo bem, mas apenas de lembrar que o dia não começaria com o som da risada de Josh já fazia meu coração entrar em queda livre novamente.  Acabei adormecendo no sofá mesmo e acordei às quatro da manhã com uma manta me cobrindo e passos descalços sobre o piso frio do apartamento.
***
Sábado eu rolei para fora do sofá com meu celular apitando loucamente no meu quarto. Tyler. “Ei Ally, tava dando uma olhada nos filmes em cartaz e não tem absolutamente nada de bom passando. Que tal você vir pra cá? Podemos escolher alguma coisa pra ver no Netflix e comprar alguma coisa bem gordurosa pra comer :)”
Eu poderia ir pra casa dele, mas eu deveria? Não me parecia nada certo ir pra casa do cara sobre o qual eu passei o dia anterior todo pensando mesmo tendo um (baita de um) namorado. “Parece ótimo Ty, vai mais alguém?”, respondi depois de passar três minutos mordiscando a ponta do meu dedão. “Pensei em convidar o Ash, Isaac, Louise e a Jenny, tudo bem por você?” Depois que li isso consegui respirar aliviada. Tyler disse que chamaria o resto do elenco principal da série, o que significava que o “só como amigos” do dia anterior era sério. “Por mim tá ótimo :) me manda teu endereço, o horário e o que eu preciso levar e tá feito haha”,respondi. Larguei o aparelho sobre a cama e rumei pra cozinha, onde encontrei um post it cor de rosa colado na geladeira. Charlotte. “Bom dia dorminhoca! Fui ao mercado. Se precisar de alguma coisa tô com o celular. Beijinhos” Típico. Quando finalmente notei o horário que o relógio marcava, foi impossível não me assustar: Onze da manhã. Nem me lembrava quando fora a última vez que dormira mais de 4 horas direto. Me perguntei se aquela minha longa noite de sono fora fruto da menor quantidade de cafeína do dia anterior, mas se fosse isso mesmo nem em sonho admitiria isso a Tyler. Não mesmo.

***
Tyler sempre recusava as caronas que eu o oferecia na saída do trabalho porque segundo ele, morava muito perto do estúdio. E de fato. O prédio com exterior de tijolinhos em que morava era coisa de 2 ou 3 quadras do complexo de estúdios na direção oposta do Starbucks a que fomos. Não me surpreendia com a pontualidade dele agora. Corri até o interfone e apertei o botão do apartamento 6B para alguns segundos depois ouvir a voz de Ty pelo pequeno alto-falante.
- Pronto?
- Boa quase noite Tyler. Allison aqui. Câmbio. – Respondi com o ar risonho. O som do alto-falante fez com que a risada alta dele soasse como uma daquelas tvs antigas que não estavam em canal algum.
- Boa quase noite Ally. Sinta-se a vontade para subir. Câmbio. – E então a porta de entrada do prédio foi destrancada. Surpresa do dia: O elevador do prédio estava com problema, o que significa que fui obrigada a subir 6 andares andando. Cheguei ao meu destino querendo vomitar meus órgãos internos. Tabagismo era uma grande de uma merda mesmo. Eu fumava menos que Josh e ainda assim tinha menos resistência física do que ele. Enquanto me recompunha, a porta do apartamento 6B se abriu e de lá um Tyler de cabelos bagunçados, regata branca e uma calça jeans justa saiu. Começou a rir quando viu o estado em que estava, ainda tentando fazer meus batimentos cardíacos voltarem ao normal.
- Acho que esqueci de te avisar que o elevador não está funcionando né?
- Talvez. – Respondi rindo e abraçando o ruivo naquele corredor que me beijou a bochecha antes de guiar até o interior do apartamento.
- Seja bem vinda ao mundo de Tyler Joseph Hawkins. – O apartamento parecia ser um pouco menor do que o que eu dividia com Charlie, mas para uma pessoa era mais do que bom. Muito bem arrumado, ainda mais sendo o apartamento de um homem solteiro de quase 23 anos. Existiam livros, CDs/LPs e posters de bandas e filmes por todo canto em que eu olhava e isso era demais. Quase meu apartamento dos sonhos. - Quer beber alguma coisa Ally? Cerveja, um refrigerante...Uma água talvez? – E riu. A risada dele é de longe um dos sons mais confortáveis de todo o universo. Logo atrás da voz de Josh com sono.
- Eu aceito muito um copo de água. – O respondi rindo antes que ele me guiasse até a cozinha. Me apoiei à pia enquanto Tyler me servia um copo enorme em vidro vermelho, cheio de água gelada. – Paraíso. – Disse logo depois do primeiro gole. – E a galera vem?
- Aparentemente só os caras. – Ty se apoiava ao balcão de pedra no lado oposto em que eu estava – Louise não tá na cidade e Jenny está ocupada com a família toda aqui pra festa de aniversário de 80 anos da avó.
- E quais são os planos pra essa noite selvagem de Sábado? – Perguntei com o copo gelado já pela metade na minha mão.
- Muitas drogas e orgias. – Não preciso dizer que quase morri engasgada por tentar rir ao mesmo tempo em que engolia água. A cena acabou comigo sentada sobre a pia da cozinha tentando recuperar meu ar enquanto Tyler que ria tanto quanto eu me abanando com as mãozonas dele – Ia dizer pra irmos até uma pizzaria que tem na quadra atrás daqui e pegar umas pizzas e escolher algum filme ruim no Netflix, mas se você quiser a minha opção anterior eu tenho meia garrafa de vodka no congelador pra começar.
- Sério cara. – Disse antes de respirar fundo e rir um pouco da situação toda – Você é impossível Tyler.

***
Fomos conversando e rindo até a pizzaria em que 2 pizzas gigantes de pepperoni nos esperavam ansiosamente antes que nossos companheiros de série chegassem e encontrassem um apartamento vazio. Era um restaurante não muito grande, com várias famílias jantando em mesas cobertas com toalhas em vermelho, verde e branco. O cheiro no ar era absurdamente bom. Enquanto Tyler acertava a conta, notei que uma garota de cabelos longos e bastante escuros nos observava atentamente de uma das mesas. Achei que era impressão minha e comecei a brincar com a barra da camisa xadrez que ele usava por sobre a regata branca de antes. Depois de alguns segundos vi a garota novamente, mas agora ela comentava alguma coisa com uma mulher que se sentava à mesa com ela. Então ela apontou na nossa direção. Sorri de leve para ela e suas bochechas faltaram explodir.
Quando Tyler e eu acabamos de por nossos pés para fora do estabelecimento ouvi uma vozinha logo atrás de mim, assim como um toquinho no ombro. “Me desculpe atrapalhar mas... Vocês são de ‘Six of Us’ não são?” A garota que nos observava antes disse, o que me pegou muito despreparada. Eu sabia que a série estava crescendo, conseguia ver isso pelo meu número de followers no Twitter e no Instagram, mas poucas pessoas haviam me parado na rua realmente pra perguntar se eu não era aquela menina das mechas roxas.
- Somos sim lindinha. – Tyler respondeu com um sorriso largo no rosto, movimento que ela repetiu quase que automaticamente.
- Eu sabia que eram vocês! Minha mãe ficou falando que eu estava enganada e que era falta de educação atrapalhar vocês pra perguntar isso, mas eu gosto muito da série, não podia perder a chance. – Falou com a voz doce. Os olhinhos castanhos brilhando forte.
- Não atrapalhou de jeito nenhum querida, é sempre muito bom saber que tem gente que acompanha o nosso trabalho. – Disse acompanhando o sorriso dos dois. De fato era muito bom ser reconhecida, saber que estava fazendo o meu trabalho como deveria.
- Vocês acham que a Rainbow e o Max vão ficar juntos? – A garota perguntou tentando conter as mãos animadas. Ty e eu nos olhamos no mesmo segundo o que fez a menina em nossa frente rir baixo.
- Quem sabe no futuro? – Soltei dando uma piscadinha para ela que ficou ainda mais animada.
- Eu espero que sim. – Ele disse batendo seu cotovelo de leve no meu braço. Quando olhei para cima vi que ele estava com aquele sorriso da cafeteria de novo e tive que dar uma cotovelada nele também. Só que mais forte. Anna – a garota – perguntou se poderia tirar uma foto com a gente, o que obviamente aconteceu e não foram poucas. Nós duas (uma abraçadas e outra fazendo careta), Anna e Ty (dele a abraçando e dela beijando sua bochecha) e de nós três com as caixas de pizza. Foi uma festa. Ty a fez prometer que postaria as fotos em alguma rede social e o marcaria porque ele queria postar uma delas em sua conta no Instagram. Anna foi ao delírio.
- Vocês formam um casal bonito. – Anna disse enquanto guardava o celular no bolso da calça que vestia. Nos encaramos de novo. Deixei um riso nervoso escapar.  “Eu tenho namorado” respondi em tom risonho para a garota que se mostrou um tanto decepcionada. – Nunca se sabe né? – Ela deu de ombros – Pelo menos na série eu acho que vai rolar.
Nos despedimos com  abraços antes que Tyler e eu fizéssemos o caminho de volta ao seu apartamento. Já estava quase no horários dos caras aparecerem e ainda não estávamos lá. Fomos quase o caminho todo em silêncio. Eu estava tentando assimilar toda a informação que eu tinha. Ty aparentemente gostava de mim. Vivia me jogando indiretas (as vezes até diretas demais) e me enchendo de elogios. Era muito bonito. Muito mesmo. Beijava muito bem. Muito mesmo. Mas ainda assim não me sentia como quando conheci Josh. Nem chegava perto. Mas algo em mim queria mais de onde aquele beijo viera e eu tentava com todas as forças abafar essa vozinha na minha cabeça.
- Nunca se sabe né. – Ele disse mais para si do que para mim enquanto destravava a porta de entrada do prédio. Fingi que não o ouvira.

Nunca se sabe né?

Por Mariana J.

n/a: Olha só quem finalmente apareceeeu: A parte 5 da história dos bonitinhos Allison e Josh (que não esteve no capítulo infelizmente). Se você perdeu alguma parte da saga desses dois você pode ler o capítulo extra aquie no fim tem link para todas as partes anteriores. E como de costume eu fecho a postagem com a música no capítulo, que por acaso é de uma das minhas bandas favoritas. Espero que tenham gostado.