sexta-feira, 4 de abril de 2014

Tango na corda bamba

Eu estava deitada de costas para o chão com meus olhos vagando o teto branco do quarto abafado na madrugada, sentindo minhas pálpebras pesarem a cada minuto que se passava. Augusto repousava a cabeça cheia de fios longos e cortados assimetricamente sobre o osso saltado do meu quadril. Na posição em que me encontrava conseguia vê-lo soltando uma grande quantidade de fumaça branca e densa por ente os lábios antes de me entregar o cigarro fino e já bem reduzido entre o indicador e polegar ossudos de sua mão. Puxei. Segurei. E fui soltando a fumaça como num suspiro preguiçoso enquanto levava o cigarro de volta a Augusto que puxou só mais uma vez antes de abandona-lo sobre o chão frio. Se a vida de alguns é um eterno Carnaval, bem, a minha seria um tango. Sempre dramática, exagerada, passional, intensa. Antes de conhecer Augusto eu vinha dançando sozinha a muito tempo, tanto que eu ainda estava tentando reaprender os passos que antes eu dançava com outros caras. De olhos fechados deixei que meus dedos se perdessem naquela floresta de fios macios que era seu cabelo. Aquele momento não poderia ser mais perfeito. Nós dois totalmente altos, largados no chão de seu quarto. Eu fazendo um cafuné, ele passando a ponta dos dedos longos por sobre a minha perna direita. Um silêncio confortável enchia o cômodo e tudo o que eu conseguia ouvir era a sua respiração calma em descompasso com alguns carros que passavam na rua.
- Eu sempre gostei muito de cemitérios. – Ele soltou enquanto desenhava espirais no meu joelho.
- O que?
- Eu sempre gostei de cemitérios, sabia? De verdade. Acho fascinante.
- Disserte. – falei sorrindo. Augusto tem essa mania de dizer algumas coisas aleatórias, não necessariamente quando está sobre efeito de drogas.
- Eu sei lá, me sinto confortável, como se eu pudesse ser eu mesmo. Como quando você sabe que não tem ninguém te observando. Bem, talvez tenha algum espírito te observando – de olhos fechados eu conseguia notar pela forma com que sua voz saía que estava com um sorriso largo no rosto e sorri junto – nunca se sabe.
- Aham.
- Teve uma vez – ele disse enquanto se sentava, o que me fez abrir os olhos a tempo de observar seus movimentos- em que eu estava em Buenos Aires, alguns anos atrás. Eu sempre visito o cemitério das cidades em que vou, e sério, o cemitério de lá é muito bonito. E antigo. Antigo pra caralho. – Augusto falava tão calmamente que toda vez que ele abria a boca eu automaticamente queria me aconchegar mais perto só para ouvir sua voz.
- Sendo um cemitério tão antigo – voltou a dizer passando as mãos no cabelo como se tentasse bagunça-lo ainda mais- da pra imaginar a quantidade de túmulos que existe lá. Tem uns enormes, com estátuas belíssimas e dezenas de placas dedicatórias das pessoas que ficaram. Colegas de trabalho. Família. Amigos. Essas coisas.
Tem outros de famílias grandes que são praticamente mausoléus. Lembro de um que tinha mais de 10 caixões diferentes em estantes. Todos enormes, bonitos, bem cuidados, com flores frescas enfeitando. Pela estética do túmulo você consegue imaginar se a pessoa era querida certo? – concordei com a cabeça pra mostrar que estava acompanhando.
Então eu estava sentado em um dos banquinhos de madeira que tinha por lá e fiquei observando os outros turistas que estavam lá e todos – não uma meia dúzia, a grande maioria- parava pra observar e tirar foto dos enormes mausoléus. Ninguém nem olhava para aquelas lápides muito antigas, com o nome e data de falecimento tão desgastados que você mal consegue enxergar. Todo mundo passava direto. Eu parava em todos e ficava imaginando quem eram. As suas histórias, seus sonhos, as vidas que viveram. As pessoas que estão enterradas lá são menos importantes do que aquelas com os túmulos cheios de dedicatórias? E se as famílias não existem mais? E se elas simplesmente não podiam pagar uma sepultura mais elegante?
Eu sei que isso soa meio idiota mas as pessoas não deveriam se preocupar tanto com a estética do maldito tumulo, o morto não vai voltar pra agradecer. Você precisa cuidar do que realmente importa depois que alguém parte: das memórias, das histórias, dos momentos bons e ruins. Aquela lápide apagada, com um punhado de flores secas caídas pode ser de alguém muito mais querido do que aquele antigo chefe de uma empresa multimilionária que tem dezenas de placas de condolência de pessoas que nem se importavam na verdade. – Eu não sei explicar o quão fascinada eu estava por tudo o que ele estava falando. Nem em um milhão de anos eu conseguiria ter aquela linha de pensamento. Augusto cruzava as pernas enquanto se recostava na parede logo na minha frente. A ponta do cigarro pendendo dos dedos tatuados. Um sorriso largado nos lábios finos. Os olhos castanhos com as órbitas levemente avermelhadas.

- Sabe de uma coisa? – ele voltou a se pronunciar – Nós todos estamos na corda bamba. Só é necessário um deslize assim – falou aproximando o dedo indicador do polegar – pra que a gente caia. E não vai ter rede nenhuma lá embaixo pra te segurar, garota. A vida é muito frágil. Eu não sei se eu tenho medo de morrer sabe? Tenho mais medo de ter um túmulo cheio de placas de pessoas dizendo o quanto vão sentir falta de mim sendo que a maior parte delas me julga pelo meu corte de cabelo ou essa argola no meu nariz – disse zombando do seu piercing no septo, o que me fez rir baixo. De alguma forma eu sentia que a minha dança estava começando de novo. Então ele pousou seus olhos sobre os meus, como se procurando um lugar seguro pra descansar e desenhou um sorriso antes de voltar a deliciar meus ouvidos- Estamos na corda bamba. E eu não vou te deixar cair.

Por Mariana J. 

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